Malharia Nossa Senhora da Conceição

Memória Comercial | Não há comentários

william lee

A História da Meia Feminina

Quando me propus a pesquisar e escrever um post sobre a Malharia Nossa Senhora da Conceição não esperava que o assunto passasse por tantos fatos pitorescos que fugissem completamente da condução na narrativa imaginada. Logicamente passei pelos textos do BSL e do Jobanito. Entretanto encontrei muito material na internet, tanto em livros disponíveis para download , teses de mestrado e até no Facebook. Mais recentemente, pude editar o post graças a contribuição de Maria Cristina Gimenes, bisneta de Luiz Simon, que reside atualmente no Canadá.

A história se desenrola desde a fuga de um monge inglês e passa pelos Barões do Café, II Guerra Mundial, chegando até os pés dos craques da Seleção Brasileira de Futebol de 1982. Vamos lá, acho que você vai gostar de conhecê-la.

As meias desde sempre foram o produto principal da Malharia N.S.Conceição. Entretanto, já há algumas décadas, a produção se diversificou abrigando também outras peças como lingerie, cuecas, regatas, etc.

Historicamente, a técnica da malharia manual, usando tábuas e pinos no lugar de agulhas, surgiu há cerca de 1.000 anos a.C. Os estudos levam a crer que as meias feitas em malha existem desde a década de 1580 quando o reverendo inglês William Lee inventou o primeiro tear manual para malhas capaz de executar o trabalho realizado por quinze habilidosas tricoteiras.

willian e maquina

William Lee e o tear inventando no século XVI

Séculos depois, em 1864, outro inglês, o monge Willian Cotton aperfeiçoou o processo patenteando uma máquina capaz de obter tecidos de malha. Este tipo de equipamento foi usado durante muito tempo para produção em alta escala de meias com costura.

fabrica de willian cotton

Fábrica de Willian Cotton em Pinfold Gate, Loughborough (1880)

Até aí, tudo bem…Mas onde Jacareí entra nesta história? Pois bem: diz o estudo de Suely Russo (veja fontes de referência) em seu trabalho de mestrado que o tal monge inglês acabou desenvolvendo um produto com uma malha muito fina se comparado com os panos que mulheres enrolavam nas pernas. Este produto, emoldurando melhor as pernas das mulheres, foi considerado um produto erótico. Perseguido, Willian Cotton fugiu para a França e lá ensinou seu ofício a outros empreendedores, entre eles Leon Simon, enviado que foi pelo irmão de Luiz Simon para aprender a operar, comprar e despachar novos teares para a modernização da malharia recém criada em Jacareí.

Bem, a família Simon veio para Jacareí em 1845. Simon Simon e sua esposa Sophie Sereth Lehamann Simon (Madame Simon) eram judeus e aqui começaram seus negócios. Ele era um mascate que progrediu e posteriormente montou um Hotel e Casa de Pasto (restaurante), na esquina entre as atuais Rua Dr. Lúcio Malta e o Largo do Riachuelo.  Tiverem 7 filhos, entre eles, Luiz Simon, jacareiense nascido em 1850 e que assumiu os negócios do pai aos 19 anos, associando-se ao irmão Leon em 1876, fundando, em 1879, a Fábrica de Meias Luiz Simon e Irmão, com um capital de 32 contos de réis, considerando o prédio e o maquinário. 

Inicialmente no mesmo prédio do restaurante, contava com dois teares importados da França e doze trazidos da Holanda. Felizmente, naquela época já existia seguro, pois a primeira parte do maquinário foi perdida num naufrágio. Surgiu, assim, a primeira fábrica de meias instalada no continente americano.

Esta empresa teve êxito quase que de imediato, sendo que em 1881 já era premiada em exposição no Rio de Janeiro.

Diploma recebido em 1881

Usava fios especiais de algodão importados da Europa e produzia 14 mil dúzias de meias sem costura por ano destinadas às cidades do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Utilizava em torno de 67 operários locais, na maioria mulheres, sem competência técnica, mas que foram treinadas por mestres estrangeiros, imigrantes que fugiam da depressão europeia buscando novos empregos em solo brasileiro. Entre estes podemos destacar o alemão August Fritz e o francês Júlio Briant que futuramente viria a montar sua própria fábrica. Seu primeiro “folguista”, que conduzia o “vapor”, foi o belga João Baptista Dennis, pai do jornalista Jobanito. 

fab briant 1917

Fábrica Briant em 1917

A empresa esteve assim registrada até 1885 quando foi vendida a um grupo de fazendeiros. Maria Cristina conta que seu bisavô mudou-se para o Rio de Janeiro onde comprou duas farmácias, já que três de seus quatro filhos seguiram a carreira de farmacêuticos.

O grupo de fazendeiros, que pagou 40 contos de réis pela empresa, era formado por quatro sócios: Dr. Joaquim Ribeiro de Mendonça, Coronel Delfino Martins de Siqueira, Barão de Santa Branca e Alfredo Alberto Ribeiro de Mendonça. As instalações foram transferidas para o palacete do Barão de Santa Branca no Largo da Matriz, um majestoso edifício com 2.100 m² de área, em dois pavimentos.

Em fins daquela década, a produção da empresa, que continuava usando fios importados, foi afetada pela política protecionista do Governo Imperial. Taxas menores para produtos importados tiraram a competitividade da malharia. Neste período trabalhavam na empresa somente 30 pessoas.

Em 1898 ela foi vendida para Ferraz Fester & Cia que alterou a razão social para Companhia Industrial de Jacarehy. A empresa provavelmente foi adquirida por João Ferraz, futuro prefeito da cidade, pois este assumiu a gerência da fábrica.

O palacete, um tanto descaracterizado pela função industrial

Por volta de 1901, foi adquirida por imigrantes alemães prepostos da empresa capitalista Theodore-Wille. A razão social era “Hoffmann, Ahlgrenn e Cia.” e o nome fantasia “Fábrica de Meias Hoffmann-Jacarehy”. A empresa operou com capital fechado até 1909, quando passou a ser uma S.A., permanecendo, no entanto, a Hoffmann e Cia. como sócia majoritária (84,8%.). Os outros acionistas eram todos estrangeiros. Em outro ramo de atuação, a empresa Theodore Wille ficou conhecida por exportar a primeira saca de café da província de São Paulo para a Europa.

A companhia teve um período de prosperidade até 1912, desta vez por uma lei de proteção à indústria implantada no governo de Floriano Peixoto. Participou de exposições, sendo premiada em São Luis (1904 – Medalha de Ouro) e no Rio de Janeiro (1908 – Grande Prêmio). Era na ocasião uma grande empresa com 300 operários, diversos teares para fabricação de meias finas e grossas, cinqüenta máquinas de costura, maquinas de bobinar, uma completa fábrica de caixinhas de papelão, oficina mecânica e uma moderna tinturaria. Operava com energia própria. Funcionava até ás 21 horas para poder atender a demanda. Neste ambiente de prosperidade, em 1911 seus sócios decidiram expandir a empresa, adquirindo novos equipamentos. Para isso contraíram um grande empréstimo. Em 1913, a falta de negócios fez com que a fábrica fosse fechada temporariamente. A situação agravou-se no período que antecedeu a I Guerra Mundial.

Em 1918 mudou o controle acionário da Companhia, com a seguinte distribuição: Coronel Marcelino de Carvalho (42,68%), Ernesto Diederichsen (24,00%), a empresa francesa, com sede em Paris, Scheitlin&Co.(27,4%) e o Brasilianische Bank fürDeutschland-SP (5,72%). Após o término da Primeira Guerra Mundial ficou difícil para os germânicos investirem no Brasil. Desta forma, para manterem-se em atividade, agiam de maneira discreta e esperta, continuando a usar prepostos para gerir seus negócios. Isso pode ter ocorrido com a Malharia, onde o coronel Antonio Marcelino de Carvalho, residente em São Paulo, maior acionista, não participou de sua diretoria. Para presidente foi eleito Ernesto Diederichsen (1877/1949), de família de fazendeiros, imigrantes de segunda ou terceira geração. Importante notar, que na firma de importação e exportação Theodore-Wille, majoritária desde 1901 com os Hoffmann, Diederichsen foi gerente comercial.

ernesto-diederichsen

Ernesto Diederichsen

 

Neste mesmo ano de 1918, a empresa adotou a razão social de Malharia Nossa Senhora da Conceição e enfrentou grandes desafios, inclusive uma pandemia de gripe que atingiu muitos operários da fábrica.

interior da malharia em 1930(B)

1930 – Interior da fábrica no setor de acabamento. Ao fundo vê-se o diretor da indústria Ernesto Diederichsen e o administrador geral Francisco Lima Sobrinho (Chiquito Patrício)

 

Com uma grande visão de mercado, a antiga empresa inovou e passou a investir em novos maquinários. Adquiriu, em 1927, a Fábrica de Meias Marina, de propriedade do empresário gaúcho Adamastor Brasil. A partir de 1930 consolidou sua posição no mercado de meias, contando agora com 430 operários. A Malharia não foi atingida pela depressão de 1929 onde 40% dos estabelecimentos fabris encerraram seus negócios. Em 1932, como todas as demais empresas, sofreu reflexos da revolução constitucionalista. Em 1936 quitou aquele antigo empréstimo e fechou a primitiva fábrica instalada no Largo da Matriz que não satisfazia mais as necessidades de produção. Ampliando a Fábrica de Meias Marina, transferiu- se para as novas e perfeitas instalações na rua Barão de Jacarehy n°74. O prédio da “fábrica velha” foi demolido em 1939.

No período da II Guerra Mundial, com a entrada do Brasil no conflito em 1942, o governo colocou um interventor na empresa com o objetivo de desapropriar seus bens, haja vista a participação societária da empresa alemã Theodore-Wille.

Em agosto de 1944, Miguel Hadadd, de família libanesa, adquiriu a malharia por meio de um processo licitatório. A gestão da empresa ficou a cargo de seus filhos Adib, Farid e Labib Miguel Haddad. Anos depois se integrou à sociedade, o filho mais novo, o araraquarense Elias Miguel Haddad.

Elias Haddad, vice-presidente da Fiesp. Foto Vitor Salgado

Elias Miguel Haddad

A empresa foi beneficiada no período pós-guerra, pois sem competição externa e tendo ainda disponível o mercado interno, pode ampliar seus negócios para alguns países latino-americanos e outros da África. Foi a época do pico dos resultados positivos da Malharia. A construção da Rodovia Presidente Dutra trouxe mais ganhos para à empresa que antes precisava enfrentar a sinuosa Estrada Velha Rio-São Paulo.

Em 1955, a Malharia passou a usar fios de náilon importados que permitiu o desenvolvimento de novos processos de produção e o uso de equipamentos tecnologicamente atualizados. O Nylon, marca registrada pela americana DuPont, era representada no Brasil por duas empresas e através destas a Malharia pode importar os fios, tornando-se a primeira empresa fabricante de meias de náilon no continente americano. Posteriormente, passou a fabricar meias com tecidos mais finos (transparentes) e foi a pioneira na produção de meias femininas, em tamanho único e sem costura.

No final da década de 1950, a Malharia passou a participar da Feira Nacional da Industria Têxtil – FENIT, a pioneira das feiras comerciais, uma antecessora das Fashion Week. Nos primeiros anos ela associou-se a uma empresa americana que patrocinava o evento Miss Universo. Desde modo, quando esta participava na FENIT, acabava usando meias da Malharia.

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Feira Nacional da Indústria Têxtil – FENIT

Ate a década de 1960, a empresa desenvolveu vários produtos e marcas. Uma das mais famosas foi “Eternelle”, inspirado no slogan “eterna para ela”, pois a meia não desfiava quando rompida. Passou também a utilizar a Lycra, marca também registrada da DuPont. Lançou a meia-calça como alternativa a meia fina. Os anos 60 foi a década áurea por causa da mini saia e o lançamento de meias coloridas. Foi nesta época que a empresa focou em uma marca: surgiu a Lolypop.

meias com mini saia

Meias-calça e meias coloridas surgiram nos anos 60 pra tentar deixar as mini saias mais decentes

A década de 1970 trouxe o jeans e uma influencia negativa para os negócios da empresa já que a peça cobria totalmente as meias femininas. A Malharia precisou inovar e passou a fabricar meias esportivas para outras empresas. Para a Alpargatas, patrocinadora da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1982, produzia as meias da marca Topper.

Na década de 1980 além das marcas próprias, produziu, sob licenciamento, produtos com marcas de terceiros como Rainha, Adidas, Reebook e Nike. Posteriormente vieram a Speedo, Azaléia, Olimpykos e outros.

marcas

Marcas parceiras da Malharia

A Malharia fez também parcerias com grandes redes de lojas. Assim como havia sido a primeira fornecedora da Sears em 1949, passou a atuar junto à C&A, Makro e Mappin (90% das vendas de meias eram da Malharia). Começou a fabricar lingerie com tecidos de meia: lingerie fina e de aparência jovem, com estampas localizadas, destacando a marca Lolypop, além da Oxford, Maxxi e Mambina. Lançou também meias massageantes que ajudavam na circulação.

produtos

Produtos da Lolypop

 

Em 1993 a empresa passou a ser Ltda. pois não justificava haver uma S.A. para uma empresa familiar de capital fechado.

A evolução tecnológica permitiu a liberação de grande parte das instalações físicas da empresa. Ao mesmo tempo que começou a construir um novo prédio na Avenida Getúlio Vargas, procurando aproveitar o espaço na unidade fabril na Rua Barão de Jacarei, iniciou ali a construção de um shopping center. Porém, a diretoria vendeu o empreendimento, entendendo que não era deste ramo comercial.  

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Jacareí Shopping Center

 

Instalações na Av. Getúlio Vargas

Atualmente, as maquinas, geralmente italianas, possuem sistemas computadorizados. Pelo fato de serem delicadas prefere-se mão de obra feminina devido às mãos menores e melhor capricho. Interessante lembrar que à época de sua fundação, a preferência também era pelas mulheres, naquela ocasião devido ao custo salarial.

A globalização afetou os negócios da empresa, principalmente pela importação dos países asiáticos. Para “ajudar” o empresariado, soma-se a isso a alta carga tributaria e a legislação fiscal inadequada.

Esta é a Malharia Nossa Senhora da Conceição. Uma empresa centenária, que sobreviveu a muitas crises e saiu delas sempre mantendo o foco nas oportunidades que se apresentaram.

 

Conheça a empresa atualmente: Lolypop

Fontes de Referência:
– Industrias Têxteis na Periferia – Origens e Desenvolvimento : o caso do Vale do Paraíba (Fabio Ricci)
– Suely Miyuki Enomoto Russo – Malharia Nossa Senhora da Conceição: História de uma empresa pioneira no Vale do Paraíba Paulista – Jacareí ) – Estudo para conclusão de Mestrado

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